28 de março de 2020

Quarentena Dia#16: mais logo, de madrugada, muda a hora e os meus relógios vão ficar todos certos, ao fim de cinco meses em desalinho. Todos os anos tenho este ritual e a mudança de hora, no último fim de semana do mês de março, costuma marcar a minha libertação de um tempo aprisionado que me rouba, ao longo dos meses de outono e inverno, uma hora solar que os meus relógios de pulso, no carro, na mota e no despertador teimam em relembrar.
Pode ser que o tempo também encontre um caminho de nos restituir a normalidade, não a liberdade - essa existe na nossa mente e só depende de nós, da forma como encaramos as circunstâncias e do valor que atribuímos ao conceito de felicidade. Desculpem, soltei o Paulo Coelho que tinha escondido atrás de uma gordura do fígado, entre o pâncreas e o Richard Bach, quando devia ter soltado um Ghandi ou um Mandela, ou até mesmo um Schopenhauer, mas como a minha batalha consiste apenas em ficar em casa, achei impróprio recorrer a artilharia pesada.
Ao sermos privados da normalidade dos dias, tecidos de repetições mecânicas dos mesmos gestos e passos, deram-nos um momento de suspensão em que se conclui o óbvio: que podia ser melhor, mas também podia ser bastante pior: revejo-me no ensinamento de Santo Agostinho, tão apropriado na quadra Pascal, que nos relembra que um dos ladrões foi condenado, mas o outro, Dimas, foi salvo e que nos 50% que nos são dados, cada qual pode escolher ver o lado solar, do copo meio cheio, ou o sombrio, do meio vazio ou apenas um copo a meio (comigo depende muito da bebida: um copo de Monte Velho estará sempre meio cheio, mas o mesmo copo com Quinta do Vesúvio estará sempre meio vazio, por exemplo.)
Neste confinamento “voluntário” imposto, mas aceite sem luta, instaurado para impedir o contágio de um inimigo microscópico que viaja através da proximidade, penso no privilégio que tenho em poder estar rodeada do essencial, em termos de afecto, cuidados de saúde, conforto e tantos pequenos grandes luxos (estou a pensar na tecnologia, na música, filmes e livros, na garrafeira e nas 3 pessoas com quem estou a cumprir este tempo, sem esquecer o frigorífico que tem gelo de três tamanhos, em modo automático). Penso nos outros, os que não são tão afortunados e depois sigo para terrenos mais pantanosos (acima do fígado, lá no lugar do coração onde deixo bater Shakespeare, Beckett e Wittgenstein): penso muito nas crianças que morrem de fome ou por falta de vacinação; Penso nos que fogem da guerra e se amontoam em campos de refugiados, à mercê de toda a miséria; Penso sobretudo nos que perecem vítimas das suas fragilidades e que são reduzidos a números que não traduzem que foram avós, pais, filhos, irmãos, maridos, mulheres ou amigos de alguém, que foram ou são amados e conhecidos pelo nome próprio. No outro dia, a Cláudia, na sua crónica, lembrou-me as palavras do John Donne, cuja obra fui reler, (meditação XVII, que podem ler aqui: http://www.luminarium.org/sevenlit/donne/meditation17.php) e que ficou célebre pelas palavras “nenhum homem é uma ilha”; Contrariando a metafísica de Donne, neste tempo somos todos ilhas de um enorme arquipélago feito de medo onde estamos a navegar à vista, sem itinerário certo, sem sair de casa; Porém, lendo a meditação de Donne, o que me fica é que os sinos dobram por ti, por mim, por todos, sempre que dobram por alguém que parte, a célebre frase que Hemingway se apropriou para título do seu romance.
Quem sai esporadicamente vive a nova realidade enfeitada de máscaras, luvas e a tresandar a álcool; um novo quotidiano feito de filas e de distância, de silêncios comprometidos e de olhares de desconfiança; Tempos de uma total dependência da tecnologia por tantos repudiada e agora imprescindível, onde ser fit também passa por ser menos info-excluído; Quem sai diariamente para trabalhar, para cuidar de todos, talvez já se tenha acostumado a este lado soturno, talvez já consiga encontrar a esperança no meio das ruínas da nossa vida anterior; A mim, alegra-me saber que a hora vai mudar dentro de casa, onde muitas coisas ainda permanecem iguais (menos a garrafeira) e que estamos mais próximos do fim da clausura, mas também fico desaustinada por termos passado mais um dia voluntariamente entregues à prisão domiciliária do corpo, enquanto tantas vidas se perdiam na inexorável frieza dos números. E penso se nestes tempos de vida em pausa aprendemos algo enquanto indivíduos e comunidade que mude definitivamente atitudes no tempo depois da espera.

Sei que hoje vos enganei, não era isto que vinham à espera de ler, pois não, seus junkies de sarcasmo alheio? Apeteceu-me ser maçadora, como os que colam uma mensagem em corrente no mural para ver quantos chegam ao fim e depois copiam e colam no mural deles, não vá o corona tecê-las e fazer-lhes a folha! Ainda  bem que o meu ligeiro TOC, não diagnosticado formalmente, nunca me deu para essas adições a correntes, talvez porque acredito e prezo demasiado a liberdade. Contudo, se for uma corrente da Tiffany’s, contem comigo, estou disponível para abrir uma excepção, mas não partilho, aceito-a e fico com ela!

3 de dezembro de 2017


Cá por casa o Presépio minimal convive com o excesso figurativo do Presépio made in Perú e ambos convivem com garrafas de gin e vodka transformadas em iluminação e com uma coroa do Advento, este ano feita de rolhas, alecrim e canela; A árvore artificial, que imita um belíssimo abeto nórdico, tem demasiadas decorações, mas tem bolas e bonecos muito irreverentes do Nightmare Before Christmas, com o Jack a abraçar a estrela no topo da árvore e, como alguns de nós são minimais, também temos uma árvore de madeira DIY só com iluminação. Cá por casa, os doces tradicionais portugueses convivem com o Xmas Cake, made in UK, e os pasteles de yema, turrones e afins, made in España. Come-se bacalhau, polvo, mas também cabrito, borrego, ou perú e temos uma pescetariana que repudia a carne, mas que gosta de caril de gambas e Ferrero Rocher, o que dá um toque vintage à sua adolescência e um certo cosmopolitismo à nossa quadra suburbana!
Não temos calendários do advento, já tivemos (com doces e também com tarefas de bondade), no tempo em que havia mais tempo, mas temos calendário de festas, pois os músicos residentes têm sempre muitas solicitações, nesta quadra! 
Na família somos menos à mesa, mas celebramos sempre todos os ausentes que trazemos vestidos de festa na memória! Fazemos muitos natais, de amigos e de família e, embora o clima seja de descontração, admitimos que haverá sempre momentos de alguma tensão; aprendi que o álcool, servido ou consumido atempadamente, com moderação, torna os olhares dos anfitriões e dos convidados mais benignos e felizes, por isso aposto sempre nos Xmas cocktails, mesmo em versões não alcoólicas! 
 O que me cansa no Natal são os presentes: a eterna luta que quase arrasa o espírito da quadra católica  (um bebé que nasceu num estábulo, na maior pobreza, para ser o Salvador) de quem tem de fazer compras sem ser Rei, nem Mago, sem ser rico, nem adivinho! 
O Natal dos adultos acaba por se transformar em inúmeras listas preliminares, de comida, bebida, presentes... mas depois, à medida que o Natal vai acontecendo, tudo se encaixa e, no ano seguinte, lá regressamos para mais um round! 
O pior do Natal é a desigualdade, o saber que há guerra, pessoas sem abrigo, sem amor e sem saúde! Fazemos o que achamos razoável, cada um abraçando as causas que lhe são mais próximas ao coração e, acima de tudo,  tentamos fazer de conta de que é suficiente, para podermos ter um Natal livre de culpa!
E é isto: cá por casa o Natal é tempo de nos enfeitarmos com gratidão, emoção, generosidade, recordações e amor, regado com cocktails e acompanhado por filmes, séries, leituras, mantas e uma banda sonora, que vai do Frank Sinatra ao Bublé, sem esquecer os Wham, ou outras pérolas dos anos 80, e improvisos ao piano, à guitarra, ou à viola!
Já não tenho magia para acreditar que todos os dias podemos chegar ao Natal, mas tenho serenidade para aproveitar a quadra enquanto dura! 

13 de fevereiro de 2017

Happy Valentine’s Day ou Os Fantasmas de Valentins Passados




Há dias assim, que por culpa da tradição e do santo consumo, pega-se na religião e justifica-se o voraz apetite por gastar euros com o cumprir do calendário!
Ainda bem que há Benfica, ainda bem que amanhã a culpa dos restaurantes não se entupirem de gente para degustar comida pseudo-moderna em doses diminutas, é do Benfica! Venham as bifanas gordurosas e as imperiais geladas, cheias de amor pelo próximo, desde que os alemães percam!
Eu cá gosto de celebrar, tudo e mais alguma coisa, enquanto a memória não me atraiçoar, por isso já embarquei no conto do São Valentim algumas vezes, outras nem tanto… Depende do que dá jeito: quando as miúdas eram pequenas fazia comida em forma de coração e elas chegavam felizes pois havia sempre um professor de Inglês que estimulava a troca de Valentine cards e como elas eram populares arrebanhavam uns quantos e era uma festa; sim e eu sei que isto dos Valentine cards é para os miúdos praticarem o inglês e tal, mas a verdade é que há miúdos que escrevem o dito cartão e não recebem e isso é tramado, é uma forma de começarem cedo a perceber o seu valor na bolsa dos afectos e a escola a cumprir metas para lá do programa educativo, ensinando a gerir a autoestima, sejam as expectativas altas ou mais subterrâneas.
Voltando a dias dos namorados, lembro-me sempre de um excerto de um texto da Luísa Costa Gomes em que um casal comemora o seu aniversário de décadas e, sentados à mesa do restaurante, vão pedindo comida, sem olhar muito a gastos porque “festa é festa!”. Estou certa que amanhã, aparecerão no meu feed das redes sociais fotos de pessoas felizes a celebrarem o santinho o que prova que as redes sociais estão nos antípodas da Literatura e que apenas se dedicam aos amores sem história, os felizes! Que bom seria se pudéssemos de forma descomplexada partilhar na cronologia os fantasmas dos namorados/ maridos/ companheiros do passado, sem termos medo de relembrar episódios menos felizes! Um grande cemitério virtual das relações passadas em que, por exemplo, o timeline do facebook não assinalasse só os casamentos e os noivados mas criasse um marco para as separações, não apenas uma menção relativa à mudança de estado civil. Apagar o passado é tentar reescrever a história e não vale a pena, pois a história tende a repetir-se!
Neste dia de São Valentim com ou sem culpa do Benfica, mas lembrando que o encarnado é a cor do amor e do coração, embora julgue que seja mentira, pois ainda na semana passada vi a minha filha mais nova com um coração de porco recém-morto e era bem azul, vamos jogar mais ao ataque e menos à defesa, pois neste dia o cartão encarnado é aceitável, vamos deixar de culpar o árbitro e vamos encher os restaurantes para comer o pão que o Cupido amassou, vamos abraçar os francesismos, os cremes, camas e infusões, destilando olhares cúmplices para os telemóveis, para nos assegurarmos que o amor do vizinho não é melhor do que o nosso! Se isso não resultar, vejam o novo filme da trilogia das 50 Shades e acreditem no poder da imitação, já que umas palmadas qualquer um consegue dar, ou receber, ao passo que uns passeios em jactos privados é mais coisa para o outro Christian, o Ronaldo!

9 de fevereiro de 2017

24 ANOS A CAMINHO!

Faz hoje 24 anos que comecei a trabalhar na Universidade de Évora! No início ia de carro e tinha um quarto alugado, o chamado quarto da criada, ao lado da cozinha, gelado e inóspito, em Invernos ainda sem Alqueva, nem aquecimento global! Ao fim de uns meses, decidi alugar um quarto na pensão Giraldo, que partilhava com colegas de Lisboa, dependendo dos dias que tínhamos em comum! Depois da pensão e do quarto ao lado da cozinha, já dormi em celas de seminários, em hotéis, hostels e guesthouses!

Quando comecei a trabalhar os meus pais tiveram de me avançar dinheiro para fazer face a estas despesas, antes do primeiro ordenado; Quando comecei a trabalhar só havia auto-estrada até Setúbal; A6, só bem mais tarde: trocava boleias com colegas: rendez-vous às 5:30 na cidade universitária, rumo a Évora e às aulas de inglês específico das 8:30, no tempo em que os cursos de engenharia agrícola e zootecnia tinham 80 alunos! Tinha um carro sem ar condicionado, com 4 velocidades, a gasolina (um belíssimo Opel Corsa Swing, preto) e algumas funcionárias mandavam-me sair das salas e esperar pelo professor cá fora! Tinha 22 anos e o cartão jovem, a confusão delas era absolutamente justificada!
Em 24 anos dei aulas de inglês a quase todos os cursos da universidade: informática, engenharia civil, zootecnia e agrícola, arquitectura paisagista, ensino básico, turismo, sociologia, gestão, economia, matemática, química, turismo, relações internacionais, geologia e biologia, engenharia de materiais, enfermagem e cursos nocturnos em Évora, Castelo de Vide e em Borba (a terminarem à meia-noite, mas já com A6 para regressar). Dei e dou aulas de literatura, tradução e cultura, aquelas em que me especializei e as que me fazem investigar sempre e ser mais feliz; Fui orientadora de estágios em Évora, Portalegre, Beja, Estremoz, Almodóvar, Vila Viçosa, Vendas Novas, Sines, Santo André, Arraiolos, Elvas, Alcácer do Sal e Montemor! Fui parada em múltiplas operações auto-stop e, por duas vezes, fui multada! Troquei 5 vezes de carro, tive acidentes e avarias e cheguei a fazer 100000 kms num ano! Em dias de mais de 35 graus, cheguei a parar debaixo de chaparros para dormir sestas, antes de regressar a casa! Nos núcleos de estágio perto do mar, a partir de Março, levava sempre a toalha de praia e fato de banho, para aproveitar melhor os tempos mortos; nas escolas perto da fronteira, ao fim do dia, ia a Badajoz às compras! Só ao fim de dois anos a fazer Lisboa-Évora-Lisboa é que tive telemóvel: o normal era ligar para casa, caso fosse preciso, do telefone fixo!
Há 24 anos entrei recém-licenciada na Universidade de Évora, como assistente estagiária, e, nestes anos todos, casei, fiz mestrado em Lisboa, tive filhas, fiz doutoramento, mudei 3 vezes de casa (cheguei a fazer durante 5 anos Azeitão - Évora, na companhia veloz de uma colega e querida amiga) fiz amigos, perdi amigos e a única constante (para além da família e dos amigos) foi o trabalho no mesmo ponto do Alentejo que, até à entrevista de emprego, em Janeiro de 1993, apenas conhecia de uma visita de estudo de liceu! Tudo porque num cocktail da Nova para alunos Erasmus, no tempo em que a reitoria era no Príncipe Real, onde é hoje a Embaixada, um
Professor me falou num concurso de recrutamento de pessoal, na Universidade de Évora, ao qual devia concorrer! A primeira pessoa com quem me cruzei, no dia da entrevista, tem hoje uma filha de quem sou madrinha!
Comecei a dar aulas na Casa Cordovil que, no cúmulo do avant-garde, tinha wc mistos para os colegas; Entretanto, passei para o Colégio do Espírito Santo, mas já dei aulas em todos os edifícios: na referida Casa Cordovil, no Colégio do Espírito Santo, no Palácio da Inquisição (hoje museu), no colégio Luís Verney (antigo quartel), no Pedro da Fonseca, no Palácio do Conde Vimioso, na Escola de Enfermagem e na Mitra, todos menos na escola de Artes (uma falha imperdoável, para quem lecciona literatura e artes). Há 4 anos, no advento da crise, tentando reduzir as despesas em simultâneo com a pegada ecológica, troquei o carro a gasóleo por um autocarro da Rodoviária e depois pelo comboio! Comprei uma vespa para agilizar a minha vida de casa às estações rodoviária e ferroviária e deixei definitivamente de dormir em Évora! Hoje fui abençoada com um belo duche matinal dos céus para celebrar a efeméride!
Ao fim de 24 anos, ainda me deslumbro, ainda me sinto turista a subir a Rua Serpa Pinto, ainda me espanto em certos becos, ainda fotografo Évora, nos kms a pé que separam as estações da universidade... Se preferia ter esta profissão mais perto? Talvez, claro, mas este quase quarto de século faz parte de mim e foi determinante para chegar a este momento, ao dia de
hoje, no autocarro, a caminho de Évora!
Sinto-me grata a todos os que, ao longo destes anos, se cruzaram comigo: São muitos, mais de metade desta lista de amigos, nesta rede social, por isso não me atrevo a identificar-vos! Apenas quero agradecer a todos, pois todos me trouxeram aqui, hoje, ao 1o dia do semestre par de 2016/2017, 24 anos depois!
(Sim, eu sei que o post é longo, mas bolas são 24 anos, não 24 horas, e tenho de me entreter nas viagens de autocarro)

Post originalmente escrito e publicado no FB, dia 07/02/2017
Foto de Carla Ferreira de Castro.

5 de janeiro de 2017

Os dias em que as Apps e um Boy me salvaram!!


3a Feira passada, ao chegar de carro, perto de Seven Rivers, como gosto de chamar a esse sítio triste e tão repleto de viadutos, que se devia chamar Sete Rios de asfaltos, para apanhar o autocarro, constatei que os lugares perto da escola D Pedro V tinham recebido de presente de Natal uma tarifação! Dúvida: ia ficar estacionada 9 horas e o limite do pagamento são 4 horas! Felizmente tenho a app da Emel, mas não sabia se seria possível fazer novo parqueamento a 140 kms de distância, visto que a app só permite 4 horas e não aceita fazer a extensão, para lá desse período de tempo! Ainda tentei estacionar, em vão, num terreno baldio (no man's land soa tão melhor) e acabei a raspar o chassis do carro numa pedra escondida pela lama e pela água da chuva! Lá voltei para os lugares, onde já havia 8 carros bloqueados, e acreditei na tecnologia. Um minuto depois das 4 horas pagas, lá estava eu, em Évora, a tentar sinalizar no mapa o meu carro nas Laranjeiras, para pagar mais outras tantas horas; Sucesso! É possível estar no Burkina Faso e pagar o parque do carro estacionado na Av da Liberdade, desde que se tenha Wi-Fi e PayPal e se tenha creditado dinheiro atempadamente! Parece complicado? Se acham isso é porque nunca tiveram o carro multado, bloqueado ou rebocado! 4a feira de manhã, cuidadosa com o meu carro, como uma criança com brinquedo preferido, encontrei óleo no chão ao deixar o lugar! A maldita pedra no chassis! Lá fui eu para a oficina, não sem antes consultar a app do Uconnect que verifica os níveis do carro e que me assegurava que tudo estava ok...Porém, a mancha no chão era real! Chego à Fiat e o cenário era pior que o Hospital Amadora Sintra, em pleno surto de gripe das aves: dezenas de carros doentes, 1 hora e 45 só para chegar ao balcão da triagem... Deixo, por fim, o carro, sem esperança de ir ao elevador de verificação tão cedo e chamo um cabify, app que me tem dado bons descontos graças ao código CARLAC519 que partilho com amigos de Lisboa e Porto, para oferecer 8€, que recebo de volta. Ao fim de 5 minutos estou a caminho de casa, com viagem inteiramente grátis!  A meio da tarde usei a app do mail para escrever umas palavras afectuosas ao chefe da oficina e consegui que o carro fosse ao elevador e me confirmassem que era só um parafuso mais solto! 
Nos últimos dias, por coincidência os primeiros do ano a estrear, as apps aliviaram-me, tornaram os dias, com as suas contrariedades menores, mas aborrecidas e stressantes, menos complicados! Numa altura em que alguns têm como objectivo para o Novo Ano desligarem-se mais da tecnologia, defendo o oposto, com saber de experiência feito!
Porém, a melhor aplicação anti-stress que tenho, está no speed dial e responde pelo nome de Vasco: é pessoal e intransmissível, sem qualquer hipótese de código promocional! Fiz o download nos anos 90, numa época onde só havia Gameboy, e quase nunca falha; porque
as apps aliviam mas não amam, nem consolam!

11 de dezembro de 2016

O Porto é uma cidade num país estrangeiro!




Isto, trocado por miúdos, é o mesmo que dizer que o Porto é uma nação!
Há umas largas semanas atrás, quando a hora ainda não tinha mudado, quebrei um jejum de 6 anos, não imposto, nem desejado, mas fruto das circunstâncias e dos caminhos por que a vida nos leva, e voltei ao Porto!
Foi a primeira vez que aterrei no aeroporto Francisco Sá Carneiro (a ironia de darem ao aeroporto o nome de um político que morreu, num desastre de avião, a caminho do Porto, ultrapassa-me, confesso) e apesar de não ter voado TAP - para grande pena minha que gosto do produto nacional, com os melhores comandantes e assistentes do universo (sim, sou suspeita, conheço alguns a quem tenho a honra de chamar amigos) - o voo Low Cost Ryanair (9.99€ cada viagem, mais low que o comboio, ou o carro) permitiu-me chegar ao Porto no sábado, às 8:30, e sair do Porto no domingo às 21:40! Passo a semana em autocarros, comboios, carros e vespa, por isso foi um alívio poder chegar num meio de transporte seguro e rápido e poder passar 37 horas no “estrangeiro”, perdendo apenas 2 horas em transportes.
A ideia deste regresso ao Porto surgiu em Julho, na sequência de um voucher de uma noite, oferecido pelas nossas filhas. Ao ver as ofertas no catálogo, houve uma que me chamou a atenção: a da Yours Guesthouse, mesmo ao pé dos Clérigos. Já tinha visto umas fotos, sigo-os no instagram, e tudo me dizia que seria a melhor opção. Apesar de já não aceitarem os ditos vouchers, os donos, pessoas afáveis, civilizadas e muito atenciosas sendo simultaneamente cool, o que é uma harmonia que muito prezo, já que muito afeto e cortesia também podem ser demasiado constrangedores para Mouros pouco habituados à hospitalidade nortenha, aceitaram a reserva e cederam-nos um dos seus estupendos 8 quartos, com terraço privado e vista maravilhosa.

Eis-nos, pois, chegados ao Porto, dia 29 de Outubro, com andantes a estrear, a caminho da Guesthouse. E que maravilha chegar e ser tudo como nas fotos e ainda mais, fruto de um Verão de São Martinho precoce que nos deu temperaturas de 27 graus, a condizer com um céu azul luminoso.
A primeira paragem na rota de fim de semana era a visita aos Miró. Tanto me queixei nas redes sociais que não podiam ir a leilão, tanto assinei petições, que era o mínimo a fazer; E com ou sem Miró, Serralves é sempre uma visita obrigatória, pela colecção, pelas exposições, mas também pelo oxigénio que se respira nos jardins.
E aqui abro novo parênteses para fazer promoção a outra empresa, não nacional, lamento, cujo marketing me permitiu viajar com muito conforto, num veículo de gama e cilindrada superior, conduzido impecavelmente pelo Sr. José. Graças ao código promocional de um amigo, a Cabify ofereceu-me 8€ na viagem o que me permitiu ir de motorista dos Aliados a Serralves a custo zero! (Se quiserem ter 8€, em Lisboa ou no Porto, instalem a app Cabify e coloquem o código CARLAC519 que usufruem desta quantia e oferecem-me, em simultâneo, 8€ de volta!).
10 da manhã… Bilheteira de Serralves para comprar bilhetes para a exposição, 11€ por pessoa, a não ser que tenham conta e cartão do BPI. Claro que tenho cartão do BPI e, às 10:10, dou comigo a pensar que esta visita ao Porto está a sair baratíssima. Depois da soberba visita à exposição, sobre a qual já tanto se escreveu com propriedade que apenas posso subscrever, depois de levantar o casaco deixado no guarda-roupa que funciona na capela, passeei nos maravilhosos jardins e trouxe de lembrança um ataque de alergias épico, mas a culpa é toda do Outono e da mudança da hora que me desordenam os chakras, ou o bioritmo ou “o raio que o parta que nunca mais chega o Verão!”, não do Jardim, nem da cidade!
O regresso foi a pé pois no Porto quase tudo está a 600 metros, mesmo que seja a 600 mts vezes 3 ou 4 vezes: No sábado andei 18,4 kms a pé e ainda bem que o fiz, pois pude digerir a sandes de pernil com queijo da serra da Casa Guedes (eu tenho uma filha que não come carne, por isso foi um momento de compensação) e, acima de tudo, pude perceber o quanto o Porto mudou; Mudou para o bem, com esplanadas, com limpeza, com preservação do património histórico e saudável convivência deste com a modernidade, mas também mudou para o menos bom, para quem lá vive, sem viver do turismo, pois tornou-se um destino muito apelativo para estrangeiros, com tuk-tuks e alguma gritaria e turbulência, decorrentes desse forte apelo turístico. Eu também estava de estrangeira, por isso achei tudo fantástico, até poder observar a pitoresca fila à porta da Lello, que vende mais bilhetes de entrada do que livros!
O fim de tarde de sábado estava reservado para assistir ao showcase do Samuel Úria na Fnac de Santa Catarina, grátis, of course, e até já começa a parecer mal! Não era especialmente fã do Samuel Úria mas depois de ouvir, ao vivo, a apresentação demorada (cantou bem mais do que a meia dezena de temas, habituais nestas promoções em Fnac) do Carga de Ombros, fiquei convertida e só posso recomendar que ouçam também!


A Título de balancete: à hora do jantar ainda só tinha gasto uns Euros numas águas, num éclair e café na Leitaria do Paço e na dita sandes de pernil, mais o cartão andante pelo que, à noite, seguindo a sugestão de uma amiga nativa, fui jantar ao Flow, na Cedofeita: Comida boa, não especialmente iluminada de transcendência celeste para as papilas gustativas, mas num espaço de excepção e com empregados afáveis. Sempre que vou ao Porto acho que as pessoas em geral e as que nos atendem, em particular, são mais normais, menos atacadas pelo vírus “ai eu sou chefe de sala/empregado num restaurante com pinta por isso posso ter um ar arrogante de quem é dono disto”. Em Lisboa só costumo encontrar este tipo de simpatia e cortesia sem preconceitos, na esfera de restaurantes com pinta, nos espaços do Avillez.A noite de sábado estava reservada para a Foz. De novo a pé, com passagem pelo Bom Sucesso e com a alegria de constatar que o Porto continua a ser uma cidade segura para deambular e que mantém um equilíbrio harmonioso entre o passado e o presente.
 
O Domingo foi consagrado à margem Sul, a uma visita demorada às caves Taylor’s e a uma incursão relâmpago nas Caves Ferreirinha. Sou adepta fervorosa dos tintos do Douro, talvez com a mesma intensidade que um adepto do Porto ama o seu clube, pelo que poderia passar vários dias a visitar e a conhecer a história de cada família. Escolhi a Taylor’s pois a história desta família Inglesa é fascinante, mas fiquei com pena de não ter tido tempo para conhecer igualmente as caves da Symington. Imbatível a prova de portos acompanhados de trufas e frutos secos, com vista deslumbrante para o Porto!
A tarde chegou depressa com um encontro com um amigo que não abraçava há mais de uma década e com uma ida à Casa da Música ouvir uma experiência a cargo dos Dias da Música Electroacústica, a convite do Professor de Análise e Composição Musical da filha que nunca provaria uma sandes de pernil, e com a participação da pianista Ana Telles, que por coincidência, é minha colega em Évora.
Depois da experiência inovadora e refrescante de estarmos numa bola de sons e imagens um novo carro da Cabify levou-me de regresso ao aeroporto, inteiramente grátis, uma vez mais, por causa dos códigos promocionais.
Como desabafo último deixo-vos uma confissão junto ao Douro:
Se eu tivesse nascido tripeira não saía da beira deste rio, deste vinho, deste Porto! Quero ser adoptada! Quero ser amiga do Rui Moreira! Quero ter primos, tios e sobrinhos no Porto! Quero ser do Boavista! Quero beber finos e cimbalinos!
Dear Porto, I’ll be back!

30 de novembro de 2016

Bionic Fashion: I am Titanium...



Recentemente foi-me diagnosticada uma calcificação nos ossos mais pequenos do corpo humano, situados nos ouvidos, designados por estribos, dado a semelhança com os acessórios para montar. Aparentemente, o estribo é um osso móvel que existe em cada ouvido para transportar as vibrações e os meus, por questões hereditárias, ao que me foi explicado, estão a ficar imóveis, pelo que já não permitem que ouça frequências mais baixas, como o bebé dos meus vizinhos de cima que, quando chora, é ouvido por todos, menos por mim (o que, convenhamos, não é necessariamente mau). Aprendi que a idade, e algumas doenças que, infelizmente, não escolhem idade, nos vão trazendo várias provações que nos levam a ter de reajustar as rotinas e as expectativas. Tenho como guia que apenas a falta de memória nos rouba a identidade, tudo resto é um puzzle em que, enquanto é permitido e aconselhado, se vão substituindo as peças, mas que estes sucedâneos artificiais não nos roubam o ser, nem nos definem! No caso da audição, a médio prazo, terei de comprar duas próteses ou substituir os meus estribos por uns de plástico (imprimidos, seguramente, numa qualquer impressora 3D) ou de titânio, opção que considero mais apetecível para poder ouvir a canção Bulletproof, da La Roux, e achar que foi criada a pensar em mim! (I am titanium…)
Como qualquer cidadão informado que se preze vim para casa googlar, não a otosclerose que me atribuíram, algo sobre um ossículo minúsculo e maçador, mas as próteses de plástico e titânio existentes no mercado e percebi que os estribos com melhor performance são os alemães (Deutsche Technologie para os ouvidos). Depois fiquei a pensar que seria melhor ser mulher biónica com alguma classe, que é algo que a idade precisa para distrair e disfarçar as imperfeições, e lembrei-me que o que queria mesmo era ter uns estribos em titânio da Hermès: sempre seria massa atómica made in France, por especialistas em moda equestre! E que bom seria se as próteses de pés pudessem ser desenhadas com a ajuda do Manolo Blahnik, ou do Christian Laboutin, que houvesse próteses Prada (em termos de marking a aliteração resultaria muito bem), implantes Michael Kors, Louis Vuitton, Armani, Burberry, Chanel, Marc Jacobs, Harry Winston, Tiffany ou Bulgary...
Por último, referir a suprema ironia da otosclerose (eufemismo para surdez) me forçar a aproximar mais de algo que toda a minha vida adulta me interessou e até estudo: O silêncio!

23 de março de 2016

How did it feel?

How did it feel to leave the house, Tuesday morning, knowing you were going to be driven by a taxi, you so diligently rang for, to your death and to the unpredictable slaughter of a number of anonymous people?

Did you go to bed the night before? Did you set the alarm clock for a certain hour to get on time to yours and many others’ meeting with death?

How did it feel when you set the bomb, when you pressed the button, when you set the pace for stop being? Did you feel omnipotent, with a dash of nostalgia for leaving life undone, or did you just focus on the task of death ahead, instead?

How did it feel when you looked your fellow comrades in the eyes? Did you wave a silent goodbye before shouting the death prayer? Did you get the chance to browse around to check out your victims at the check in counter? Did you get to choose the best spot, to take the largest crowd you could?

In death you never know, you don’t want to know, except you did know and I keep wondering, in spite of faith, religion, revengeful thoughts, and beliefs, how did it feel to leave the house to die and kill, yesterday morning?

12 de julho de 2012

Delírio de meia-idade


Amanhã é o meu aniversário! Estou oficialmente à meia-idade! Não vale a pena dizer que os quarenta, quarenta e picos, são os novos 30s e os 30s são os novos 20s, pois a única coisa que ainda não conseguimos driblar é algo que parece um dado adquirido mas que tem uma poesia intrínseca maravilhosa – a “esperança de vida”. Ora a esperança de vida média, para as mulheres, em Portugal, é de 82,2 anos (dados de 2011) o que quer dizer que, de acordo com as estatísticas, estou na meia-idade. Por isso lembrei-me de fazer, em canal aberto, o balanço de meia vida.
Uma personagem de Beckett no À Espera de Godot diz uma frase espantosa, pela sua simplicidade, How time flies when one is having fun, que traduz aquilo que sinto em relação à vida que os meus pais me deram e à viagem que comecei, na segunda-feira, dia 13 de Julho de 1970,às 8h05 da manhã. O que nos confere identidade é a memória e é graças ao poder de recordar que consigo elaborar este balanço. A memória é sempre mais permanente quando os acontecimentos são especialmente marcantes, positiva ou negativamente. Hoje, porque é dia de festa, celebro as coisas boas que a vida me trouxe:
·         Uns pais extraordinários que me deram asas para persistir e nunca desistir (acreditem que não é teimosia, nem obstinação, é mesmo persistência) e uma formação católica mais ou menos praticante, que me tem acompanhado pela vida, em todos os momentos;
·         Um marido fantástico com quem viajo no amor há 22 anos, umas vezes de avião, outras de carro, de comboio, de mota, de bicicleta ou a pé, umas vezes depressa, outras devagar, mas sempre em segurança;
·         Umas filhas muito procuradas que me entraram pela vida adentro, de rompante, quando menos esperava, e que me alteraram as entranhas (e claro que não falo apenas do pneu à volta da barriga nem da cicatriz das cesarianas…);
·         Uma família próxima que me deu raízes em vários pontos de Portugal e, depois, por afinidade, em vários pontos da Europa; Hoje lembro com saudade os meus avós que sempre se lembravam do meu dia de nascimento e do meu primo, com quem trocava mimos de aniversário e brindava com gin!
·         Uns amigos -ia escrever verdadeiros, mas lembrei-me que só há amizade com verdade- em quantidade acima da média das estatísticas, com quem partilho e celebro muitos momentos importantes. Eles são a família adotada e confesso que são tantos e tão bons (muitos com filhos que se tornaram “sobrinhos” e até afilhados) que, às vezes, penso que a quota da amizade está preenchida, pois é difícil encontrar momentos para estar com todos! Tenho comigo amigos desde bebé, amigos da escola, amigos da universidade, amigos de trabalho e amigos de amigos, que amigos se tornaram… Alguns estão espalhados pelo mundo e as redes sociais ajudam-nos a não perdermos o rasto e o contacto (e dito isto, lembro-me que muitos amigos não falam português e que, provavelmente, para este delírio de meia-idade chegar a todos eles, ainda terei de fazer uma tradução para Espanhol e para Inglês);
·         Um trabalho que me ensinou a reformular conhecimentos, a perceber que quanto mais avançamos maiores são as dúvidas e a responsabilidade e maior tem de ser a humildade para aprender de novo a conhecer e a fazer. Celebro ter tido a sorte de me cruzar com professores/mestres,  colegas e alunos que me ensinaram a questionar, investigar, reformular paradigmas e a aceitar que não podemos travar todas as batalhas mas podemos escolher as “guerras de ideias” em que queremos entrar e de que lado vamos estar.
Enfim, são 41 anos de vida que se completam, com amor, humor, junto de todos os que quero e me querem bem, em todas as disposições e em todas as estações do ano.
Ergo o meu copo “virtual” à saúde de todos os que passaram na minha vida, aos presentes e aos ausentes; cada um constitui uma tatuagem de identidade na minha memória!
Com a viagem a meio, deposito uma enorme esperança de vida na meia-idade que a estatística me diz que ainda tenho, pois sei que o futuro está cheio de sonhos por acontecer!

8 de março de 2012

Quando crescer não vou fazer nada!

Há dias em que queria escrever um livro que não falasse de literatura, para o qual não tivesse de estudar tantos outros livros para desenvolver uma opinião fundamentada, convocando diferentes perspectivas. Mas a profissão de investigador não se compadece desses devaneios. Querendo falar dos temas latos que me são queridos -  silêncio, memória e identidade –  nunca o posso fazer sem invocar posicionamentos alheios que consubstanciam a  “minha” abordagem. Minha entre aspas, pois nada é verdadeiramente meu, no sentido de descoberta. Uso o pronome/demonstrativo possessivo (dependendo da frase em que se integra), apenas enquanto detentora de uma informação que até então não tinha partilhado…
Falamos de um livro, filme, até de um local geográfico, quase sempre tentando recordar as similitudes com outros livros, outros filmes, outros locais… Na investigação fazemos o mesmo: Aproximamos ou distanciamos temáticas, autores, para tornar perceptível um ponto de vista – que é nosso mas que corresponde à súmula de tantos debates, como numa equação complicada em que o resultado é sempre infinito. Em dias mais incertos, embarco em devaneios onde concluo que devia ter dedicado a vida de investigadora à Matemática; Há qualquer coisa na palavra ciências exactas que hoje me fascina, mais do que em adolescente. A ideia de pensar uma equação abstracta até a tornar real e plausível é muito poética, aos meus olhos de toldados por anos a porfiar com a língua, a literatura e a cultura.
Os dias que atravesso estão recheados de aulas para preparar, de alunos para cativar, de matéria nova para eles e não tão nova para mim, mas ainda assim sempre capaz de uma nova surpresa. Hoje acredito que uma pessoa podia viver só com a obra completa de um grande autor, de preferência canónico, e ser capaz de a estudar pela sua vida fora, encontrando novas perplexidades e desafios a cada (re)leitura. O poder das grandes obras é esse: os textos de Shakespeare, Pessoa, Tolstoi, Beckett, Joyce, Whitman, Eliot e tantos outros, permanecem intactos quase imutáveis (nem sempre, mas este não será o momento de iniciar uma deambulação sobre os folios de Shakespeare, ou da organização do baú de Pessoa) enquanto os estudiosos, de acordo com a perspectiva sincrónica ou diacrónica, vão prestando atenção às teorias enunciadas na estética da recepção e a tantos outros postulados imprescindíveis ao estudo da literatura e vão escrevendo milhões de palavras acerca de um único texto. Fernando Pessoa, a dado momento da sua vida, afirmou que estava cansado das palavras dos outros e que, daí em diante, só iria ler as suas. Puro egotismo? Talvez, mas tinha razões de sobra para assim proceder: Afinal, com tantos heterónimos nunca se sentiria só, nem preso ao mesmo sujeito poético!
Leio no Guardian que o Jonathan Franzen (romancista americano) se insurgiu contra o twitter, depois de já ter igualmente condenado, em ocasiões anteriores, os ebooks e o facebook. Discordo desta visão! Acho que a literatura pode descobrir uma postura inovadora se usar a tecnologia para lançar novos desafios. Resumir uma grande obra (livro, quadro, escultura) num tweet é um estímulo tão inovador e motivante quanto resolver um teorema complicado. Quase tão divertido como ver no YouTube a versão do Rowan Atkinson e do Hugh Laurie das emendas ao mais conhecido solilóquio do Hamlet! É demasiado simples ou provocatório? Não, é um exercício de economia de palavras, num tempo em que já não temos palavras interditas e que a verborreia tende a afogar a maior parte dos pensamentos e dos silêncios. 
Quando me perguntam o que faço, gostava de ousar dizer que penso e que isso, segundo a matriz cartesiana, deveria chegar para viver. Nunca chega! É sempre necessário acrescentar actividades com desempenhos relevantes pois o pensamento, só por si, fica desacompanhado, desguarnecido de substância e facilmente se confunde com a preguiça de não querer fazer nada! Já nada somos, em termos de investigação, se não tivermos a identidade de um ISBN, o reconhecimento de um referee ou outros trabalhos pertinentes na nossa área de especialização.
Há dias que também eu queria ser uma guardadora de ovelhas, mas falta-me a heteronímia, o engenho ou, à falta de ambos, a bipolaridade, ou a esquizofrenia!