28 de março de 2020

Quarentena Dia#16: mais logo, de madrugada, muda a hora e os meus relógios vão ficar todos certos, ao fim de cinco meses em desalinho. Todos os anos tenho este ritual e a mudança de hora, no último fim de semana do mês de março, costuma marcar a minha libertação de um tempo aprisionado que me rouba, ao longo dos meses de outono e inverno, uma hora solar que os meus relógios de pulso, no carro, na mota e no despertador teimam em relembrar.
Pode ser que o tempo também encontre um caminho de nos restituir a normalidade, não a liberdade - essa existe na nossa mente e só depende de nós, da forma como encaramos as circunstâncias e do valor que atribuímos ao conceito de felicidade. Desculpem, soltei o Paulo Coelho que tinha escondido atrás de uma gordura do fígado, entre o pâncreas e o Richard Bach, quando devia ter soltado um Ghandi ou um Mandela, ou até mesmo um Schopenhauer, mas como a minha batalha consiste apenas em ficar em casa, achei impróprio recorrer a artilharia pesada.
Ao sermos privados da normalidade dos dias, tecidos de repetições mecânicas dos mesmos gestos e passos, deram-nos um momento de suspensão em que se conclui o óbvio: que podia ser melhor, mas também podia ser bastante pior: revejo-me no ensinamento de Santo Agostinho, tão apropriado na quadra Pascal, que nos relembra que um dos ladrões foi condenado, mas o outro, Dimas, foi salvo e que nos 50% que nos são dados, cada qual pode escolher ver o lado solar, do copo meio cheio, ou o sombrio, do meio vazio ou apenas um copo a meio (comigo depende muito da bebida: um copo de Monte Velho estará sempre meio cheio, mas o mesmo copo com Quinta do Vesúvio estará sempre meio vazio, por exemplo.)
Neste confinamento “voluntário” imposto, mas aceite sem luta, instaurado para impedir o contágio de um inimigo microscópico que viaja através da proximidade, penso no privilégio que tenho em poder estar rodeada do essencial, em termos de afecto, cuidados de saúde, conforto e tantos pequenos grandes luxos (estou a pensar na tecnologia, na música, filmes e livros, na garrafeira e nas 3 pessoas com quem estou a cumprir este tempo, sem esquecer o frigorífico que tem gelo de três tamanhos, em modo automático). Penso nos outros, os que não são tão afortunados e depois sigo para terrenos mais pantanosos (acima do fígado, lá no lugar do coração onde deixo bater Shakespeare, Beckett e Wittgenstein): penso muito nas crianças que morrem de fome ou por falta de vacinação; Penso nos que fogem da guerra e se amontoam em campos de refugiados, à mercê de toda a miséria; Penso sobretudo nos que perecem vítimas das suas fragilidades e que são reduzidos a números que não traduzem que foram avós, pais, filhos, irmãos, maridos, mulheres ou amigos de alguém, que foram ou são amados e conhecidos pelo nome próprio. No outro dia, a Cláudia, na sua crónica, lembrou-me as palavras do John Donne, cuja obra fui reler, (meditação XVII, que podem ler aqui: http://www.luminarium.org/sevenlit/donne/meditation17.php) e que ficou célebre pelas palavras “nenhum homem é uma ilha”; Contrariando a metafísica de Donne, neste tempo somos todos ilhas de um enorme arquipélago feito de medo onde estamos a navegar à vista, sem itinerário certo, sem sair de casa; Porém, lendo a meditação de Donne, o que me fica é que os sinos dobram por ti, por mim, por todos, sempre que dobram por alguém que parte, a célebre frase que Hemingway se apropriou para título do seu romance.
Quem sai esporadicamente vive a nova realidade enfeitada de máscaras, luvas e a tresandar a álcool; um novo quotidiano feito de filas e de distância, de silêncios comprometidos e de olhares de desconfiança; Tempos de uma total dependência da tecnologia por tantos repudiada e agora imprescindível, onde ser fit também passa por ser menos info-excluído; Quem sai diariamente para trabalhar, para cuidar de todos, talvez já se tenha acostumado a este lado soturno, talvez já consiga encontrar a esperança no meio das ruínas da nossa vida anterior; A mim, alegra-me saber que a hora vai mudar dentro de casa, onde muitas coisas ainda permanecem iguais (menos a garrafeira) e que estamos mais próximos do fim da clausura, mas também fico desaustinada por termos passado mais um dia voluntariamente entregues à prisão domiciliária do corpo, enquanto tantas vidas se perdiam na inexorável frieza dos números. E penso se nestes tempos de vida em pausa aprendemos algo enquanto indivíduos e comunidade que mude definitivamente atitudes no tempo depois da espera.

Sei que hoje vos enganei, não era isto que vinham à espera de ler, pois não, seus junkies de sarcasmo alheio? Apeteceu-me ser maçadora, como os que colam uma mensagem em corrente no mural para ver quantos chegam ao fim e depois copiam e colam no mural deles, não vá o corona tecê-las e fazer-lhes a folha! Ainda  bem que o meu ligeiro TOC, não diagnosticado formalmente, nunca me deu para essas adições a correntes, talvez porque acredito e prezo demasiado a liberdade. Contudo, se for uma corrente da Tiffany’s, contem comigo, estou disponível para abrir uma excepção, mas não partilho, aceito-a e fico com ela!