Quando crescer não vou fazer nada!
Há dias em que queria escrever um livro que não falasse de literatura, para o qual não tivesse de estudar tantos outros livros para desenvolver uma opinião fundamentada, convocando diferentes perspectivas. Mas a profissão de investigador não se compadece desses devaneios. Querendo falar dos temas latos que me são queridos - silêncio, memória e identidade – nunca o posso fazer sem invocar posicionamentos alheios que consubstanciam a “minha” abordagem. Minha entre aspas, pois nada é verdadeiramente meu, no sentido de descoberta. Uso o pronome/demonstrativo possessivo (dependendo da frase em que se integra), apenas enquanto detentora de uma informação que até então não tinha partilhado…
Falamos de um livro, filme, até de um local geográfico, quase sempre tentando recordar as similitudes com outros livros, outros filmes, outros locais… Na investigação fazemos o mesmo: Aproximamos ou distanciamos temáticas, autores, para tornar perceptível um ponto de vista – que é nosso mas que corresponde à súmula de tantos debates, como numa equação complicada em que o resultado é sempre infinito. Em dias mais incertos, embarco em devaneios onde concluo que devia ter dedicado a vida de investigadora à Matemática; Há qualquer coisa na palavra ciências exactas que hoje me fascina, mais do que em adolescente. A ideia de pensar uma equação abstracta até a tornar real e plausível é muito poética, aos meus olhos de toldados por anos a porfiar com a língua, a literatura e a cultura.
Os dias que atravesso estão recheados de aulas para preparar, de alunos para cativar, de matéria nova para eles e não tão nova para mim, mas ainda assim sempre capaz de uma nova surpresa. Hoje acredito que uma pessoa podia viver só com a obra completa de um grande autor, de preferência canónico, e ser capaz de a estudar pela sua vida fora, encontrando novas perplexidades e desafios a cada (re)leitura. O poder das grandes obras é esse: os textos de Shakespeare, Pessoa, Tolstoi, Beckett, Joyce, Whitman, Eliot e tantos outros, permanecem intactos quase imutáveis (nem sempre, mas este não será o momento de iniciar uma deambulação sobre os folios de Shakespeare, ou da organização do baú de Pessoa) enquanto os estudiosos, de acordo com a perspectiva sincrónica ou diacrónica, vão prestando atenção às teorias enunciadas na estética da recepção e a tantos outros postulados imprescindíveis ao estudo da literatura e vão escrevendo milhões de palavras acerca de um único texto. Fernando Pessoa, a dado momento da sua vida, afirmou que estava cansado das palavras dos outros e que, daí em diante, só iria ler as suas. Puro egotismo? Talvez, mas tinha razões de sobra para assim proceder: Afinal, com tantos heterónimos nunca se sentiria só, nem preso ao mesmo sujeito poético!
Leio no Guardian que o Jonathan Franzen (romancista americano) se insurgiu contra o twitter, depois de já ter igualmente condenado, em ocasiões anteriores, os ebooks e o facebook. Discordo desta visão! Acho que a literatura pode descobrir uma postura inovadora se usar a tecnologia para lançar novos desafios. Resumir uma grande obra (livro, quadro, escultura) num tweet é um estímulo tão inovador e motivante quanto resolver um teorema complicado. Quase tão divertido como ver no YouTube a versão do Rowan Atkinson e do Hugh Laurie das emendas ao mais conhecido solilóquio do Hamlet! É demasiado simples ou provocatório? Não, é um exercício de economia de palavras, num tempo em que já não temos palavras interditas e que a verborreia tende a afogar a maior parte dos pensamentos e dos silêncios.
Quando me perguntam o que faço, gostava de ousar dizer que penso e que isso, segundo a matriz cartesiana, deveria chegar para viver. Nunca chega! É sempre necessário acrescentar actividades com desempenhos relevantes pois o pensamento, só por si, fica desacompanhado, desguarnecido de substância e facilmente se confunde com a preguiça de não querer fazer nada! Já nada somos, em termos de investigação, se não tivermos a identidade de um ISBN, o reconhecimento de um referee ou outros trabalhos pertinentes na nossa área de especialização.
Há dias que também eu queria ser uma guardadora de ovelhas, mas falta-me a heteronímia, o engenho ou, à falta de ambos, a bipolaridade, ou a esquizofrenia!