Paul Auster, Velhos e o IKEA
Vai-me custar escrever este post, mas tem mesmo de ser, se eu não expulsar estas palavras da minha cabeça, vão continuar a assombrar-me de uma forma ainda mais permanente...
Tenho um trabalho, para o bem e para o mal, que tanto me obriga a levantar às 5h30 da manhã e me faz chegar às 22h30 a casa, como me permite utilizar a hora de almoço para fazer um intervalo da investigação caseira a que me dedico, nos dias em que não estou na estrada. Não acredito muito em grandes almoços, cada vez mais o almoço se tornou num momento de pausa, ou um seguimento natural do trabalho para acabar assuntos que, por vezes, ficam por tratar nas infindáveis reuniões.
Gosto de utilizar a hora de almoço para ir às compras, ao supermercado, ao Ikea,à mercearia, à Baixa... Faço-o com a convicção que a maior parte das pessoas está a almoçar e que os que fazem como eu estão ocupados, não andam propriamente a passear entre os enfeites de Natal e as garrafas de Vodka! Muitas das minhas incursões do almoço acontecem no Ikea: uns copos aqui, uns individuais acolá, uns pés para uma mesa ali...
Há cerca de um mês este casal chamou-me a atenção: velhos (não encontro eufemismos para a idade avançada)à hora do almoço, no snack-bar do piso térreo a almoçarem: Ela um galão, ele um galão e um cachorro de 50 cêntimos. Já sabia que o Ikea se tem vindo a tornar numa espécie de cantina da classe média, mas desconhecia esta vertente de dar pão aos mais desfavorecidos. Porém, que nada na minha descrição vos leve a formar um esboço de uns velhos indigentes. Nada disso! Classe média baixa, mas lavados e até articulados... Arquivei o pensamento de que o casal devia ir lá muitas vezes e, claro está (nem vale a pena tentar esconder isto de quem me conhece) da vez seguinte que tive de visitar o Ikea, há duas semanas, passei primeiro pelo snack bar. Estava a velha na fila, enquanto o velho estava sentado, no que hoje sei ser a cadeira do costume, à espera do habitual...Fiz uma coisa à Auster (digo, sem imodéstia, pois quem conhece o autor e as histórias perceberá já a analogia): Pedi comida e sentei-me numa mesa perto deles para os ver melhor... Falavam de dinheiro e presentes: A velha irritou-se com o velho, mas depois acalmou-se... senti vergonha e, pressionada pelo tempo que não tinha para novelas, voltei para casa carregada da vida dos outros e de umas lâmpadas de baixo consumo. Ontem fui comprar uns pés para uma mesa mas, acima de tudo, fui visitar os meus velhos... Cheguei mais tarde do que é costume, já por volta do meio-dia e quarenta e eles lá estavam, na mesma mesa, quase a terminarem. A dado momento o velho abriu a carteira, onde vi um BI vitalício - que este casal, de certeza que não sonha com o cartão de cidadão- e deu 10 Euros à velha... Depois de almoçarem levantaram-se e sentaram-se num dos bancos de jardim que existem em frente à zona das caixas e ali ficaram, a fazer a digestão da magra refeição e a comentarem a vida... Não me sentei com eles pois prefiro imaginar o diálogo, que na minha cabeça se torna infinitamente mais interessante.
Se forem ao Ikea de Alfragide, entre as 12 e as 13 devem estar lá, no seu lugar de sempre... Se eu tivesse tempo, se fosse verdadeiramente uma personagem de um livro de Auster, estaria lá todos os dias e no dia que um deles, ou ambos, falhassem, ficaria mortificada de preocupação. O que me impede de o fazer é apenas o que me impede de apanhar um avião e de me deixar engolir pelo mundo. O que me impede de o fazer é o mesmo motivo que faz o casal sempre voltar... A vida é mais fácil com rotinas!Ficamos fechados na vida e acreditamos que se dermos sempre os mesmos passos, ou se corrermos muito em direcção ao mesmo sítio, distraímos a existência.
Se forem ao Ikea e virem os velhos, lembrem-se que são meus e do Auster, e digam-me como estavam!